O Mundo e EU – Letrados e aprendizes

Claudia Jannotti
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Geraldo Teles de Oliveira (GTO)

 O MUNDO E EU

A etimologia em latim da palavra aluno é alumnus, o que, metaforicamente, se equivale a criança lactente, que necessita  de ser nutrido para crescer. 2020 se estabeleceu como um ano de crescimento e aprendizados e muitos foram resgatar valores esquecidos. Não seria apenas o que nos pertence, mas fundamentalmente o queremos representar. Mestres e discípulos se alternando para fortalecimento do ato de proteger. Acredito que a comunhão com o universo será obrigatória para encontrarmos o valor inestimável do riso e do amor.

Desejo a todos um ano de renascimentos profundos.

Homenagem à minha amada mãe!!!

Claudia Jannotti

Paulo Vaz

Paulo Vaz, ilustre cidadão baiano, aceitou ser aluno e se transformou em mestre: mestre na arte de receber e artista plástico primaz. O amor pelas artes foi o condutor de inúmeras exposições que realizou e que fortaleceram a cultura no Estado da Bahia e no Brasil. Por sua contribuição recebeu a honraria da Academia Brasileira de Letras, medalha Euclides da Cunha.  

Paulo foi menino tímido, filho caçula de 4 irmãos (2 meninos e 2 meninas), perdeu o pai quando tinha 8 anos. Passou sua infância na fazenda produtora de café em Brejões, no Recôncavo Baiano. Cultivou a observação desde muito cedo. Sua mãe, Sra. Ilda Andrade Cardoso Vaz Sampaio, mulher forte, viúva aos 40 anos, nunca mais se casou. Tomou a educação dos filhos como parte fundamental de seu papel materno e os educou afirmando a importância de ter contato com variadas formas de arte e a manutenção de nossa cultura.

Fotos arquivo pessoal

Paulo Vaz de forma serena e firme fala sobre as convicções que tem, a honra de pertencer a família em que nasceu, importância de seus amigos em sua vida e suas conquistas. “É vivendo que se aprende. O passado e o futuro construindo o agora. O que realmente alimenta minha alma é o processo, o destino e seus caprichos e as entrelinhas nos mostram que não é ser mestre, letrado ou doutor, mas a humildade de reconhecer o real pertencimento de nosso eu. Sinto isso quando comtemplo o pôr do sol de minha casa, admirando a Baía de Todos os Santos, a gratidão de comungar com minha história. Como no ventre de minha mãe, aqui me sinto protegido. Minha devoção ao Sagrado Coração de Jesus me sustenta e acalma. A veneração que tenho à Irmandade da Boa Morte, situada recôncavo Baiano, cidade Cachoeira, aguardo o mês de agosto todos os anos e me rendo respeitosamente aos cantos e procissões das Senhoras da Boa Morte. Todas as lembranças que trago comigo: da fazenda de minha infância, o cheiro do café torrado, meus irmãos e irmãs, meus avós, o amor pela Bahia, minha amiga Solange Bernabó dentre tantos preciosos amigos, que fizeram os primeiros jantares da Casa, nosso gerente José Carlos Lima, que juntos construímos a história do Cafélier, a honraria que recebi da Academia Brasileira de Letras de Comendador, meus gatos, os inúmeros turistas que recebo há 27 anos. O Cafélier não apenas é da cidade, mas do mundo. Simples assim”, conta Paulo Vaz

Fotos arquivo pessoal

Paulo Foi para Europa estudar francês, italiano e Belas Artes. Aluno da Scuola Lorenzo di Médici, localizada em Florença, ele acredita que a Itália possui características que se assemelham a Salvador, como o amor por construções de ordem Sacra e as históricas, a valorização das manifestações de fé e respeito as tradições. Salvador é cidade de povo de muita fé, Salvador das festas de Largo, de Nosso Senhor do Bonfim, mas também de Iemanjá, de terreiros e suas 372 igrejas.

Bahia é certamente o estado do Brasil que se destaca na função de identidade cultural e nacional. Recebeu do jornal The New York Times classificação em uma lista dos 52 lugares indicados para visitação no mundo. A capital baiana é a única cidade do Brasil que aparece no ranking.

Fotos arquivo pessoal

O turismo tem real contribuição para uma região. Porém, o povo nativo precisa de preparo e dar a devida manutenção à cultura, precisa de parceria com a educação. Paulo contou sobre suas reflexões a respeito da educação no Brasil.  “Preocupo-me muito com o sistema educacional do País hoje. Formar doutores apagou parte de nossas verdades e incentivou o lado perigoso do Capitalismo. O Brasil tinha pressa em modernização. Claro que reconheço a colaboração das grandes universidades, mas o novo sistema desapareceu com importantes instituições, o que foi uma pena. Fico pensando se não foi um erro não tê-las preservado, como por exemplo, o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Época que o nutrir de historias eram mais importantes que consumir coisas“.

O Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, foi criado em 20 de outubro de 1872 em Salvador, com o objetivo de qualificar operários e artífices para o mercado de trabalho. A instituição que oferecia gratuitamente aulas noturnas, abertas a todos, sem distinção de cor e classe social, encerrou seus trabalhos em 1945. Em 1995, reabriram o prédio histórico, inaugurando o Memorial do Liceu. 

Paulo Vaz conta que não havia a pretensão de ter um restaurante ou cafeteria. Ele é artista plástico e precisava de um local para fixar seu atelier. Mas acabou por ter as duas coisas: o café e o atelier. Por isso o nome Cafélier.

Ele sempre gostou de receber pessoas, jantares entre amigos, os encontros ganharam aspecto de sarau cultural. Seu primeiro endereço foi no bairro de Ondina em 1992, e em 1995 mudou-se para o Pelourinho. Logo após a restauração da região onde ficou 10 anos, desde então conta com a amizade e dedicação de José Carlos Lima, gerente do café até hoje. Construindo juntos esta história de sucesso, afirma orgulhoso Paulo, mudou se mais uma vez para Santo Antônio Além do Carmo, exatamente em frente o histórico Convento do Carmo.

Anfitrião  adquiriu o belo painel Anjo Azul, de Carlos Bastos, obra icônica que  faz parte da historia de Salvador e pertenceu ao Bar O Anjo Azul, aberto na rua do cabeça em 1949. Neste espaço que o modernismo se consolidou e ganhou projeção nacional pelo artista Carlos Bastos e José Pedreira. Local de efervescência cultural e liberação sexual, muitos discriminavam o local, o que não impediu seu sucesso. Era refúgio de intelectuais, artistas como o Secretário de Saúde Anísio Teixeira, o Governador Otávio Mangabeira, a arquiteta Lina Bardi, dentre outros. Era a fusão entre boemia e filosofia.

Foto arquivo pessoal

Hoje, o Painel presencia o badalo do campanário da Igreja do Carmo que nos pauta e desacelera. O tempo não importa mais. Somos despertos a perguntar que lugar é esse, que a 26 anos encanta. Mas a resposta vem logo assim que perdemos a timidez de pedir licença para entrar. Inúmeros clientes fazem isto. Existe um atmosfera de lar, que nos obriga a tal conduta para adentrarmos no primeiro salão.

Pintada, uma das gatas de Paulo, recepciona-nos acomodada numa namoradeira entalhada em jacarandá, revestida em veludo vermelho e encanta os visitantes e clientes.

Fotos arquivo pessoal

A mágica do instante se mantém ao cruzarmos o corredor  e nos deparamos com um balcão lindo que acomoda parte da louça, caixa registradora de época, e em questão de segundos ao olharmos para leste, justo em frente, podemos ver o mar. Cena de filme dos anos 20. Não há quem não suspire e implore por uma mesa.

O cair das tardes geralmente douradas e mornas, cada objeto conta algo, em contexto poético e histórico, como a exemplo a exposição de bules e xícaras. No rodapé do cardápio se lê: “Numa xícara de café, pode-se colocar a beleza do mundo; / Numa xícara de café, pode-se sentir o sabor amargo e doce da vida. Assinado: Jorge Amado”. O texto foi escrito especialmente para a exposição de xícaras.

“Gosto de receber. Não apenas os estrangeiros, mas o povo brasileiro. Somos um povo bom”, diz Paulo Vaz serenamente.          

Fotos arquivo pessoal

Jorge Amado

A linguagem nasce das emoções. E emoções segundo o dicionário é a reação moral, psíquica ou física, geralmente causada por uma confusão de sentimentos. A verdade é que os acontecimentos fazem com que busquemos nossa linguagem para a vida.

A história  da vida de Jorge Amado, que afirmava  ser um escritor e não um letrado, construiu uma escrita em que constituiu-se em várias outras histórias. Um discernimento quase matemático com múltiplas funções, em que lógica não era componente fundamental, mas sim as  verdades que ele trazia consigo no peito como lembranças.

Arquivo Nacional

Jorge Amado  é para se ler com conhecimento e atenção. Seus  livros descreveram a beleza contida em singular  miscigenação. Brasil Africano rico de cores, perfumado por dendê, a força dos escravos do Brasil Colônia e a importância de sua fé manifestada através do Candomblé. Defensor de nossa cultura e de tradições poderosas que deveriam manter nossa identidade, o poder da regionalidade representando Brasil.

O escritor foi casado com Matilde Garcia Lopes. Em 1946 conheceu Zélia Gattai e ficaram juntos até o momento de sua morte.

Formou-se em Direito logo que começaram as perseguições que o levariam posteriormente à detenção. O livro Mar Morto foi publicado em 1936 e recebeu o prêmio Graça Aranha. Daí por diante seriam conquistadas grandes premiações. 

Por muito tempo, Jorge Amado viajou pela Europa, China e Mongólia e escreveu o mundo da paz. Jorge Amado viveu exclusivamente dos direitos autorais de seus livros. Faleceu em Salvador, no dia 6 de agosto de 2001, deixando uma vasta obra literária que ganhou adaptações para televisão, rádio, cinema e história em quadrinhos no Brasil, Portugal, França, Argentina, Suécia, Alemanha, Polônia, República Tcheca, Itália e Estados Unidos.

Jorge Amado ensinou que escrever era para ele contar suas memórias, suas lembranças e cumplicidade com os fatos. Que se estabelecia num ciclo perfeito entre ele e suas experiências que moldavam seus personagens, suas convicções e a o amor pela Bahia.    

Interessante esse trecho de uma entrevista de Jorge Amado em 1987: “Aprendi com o povo e com a vida, sou um escritor e não um literato, em verdade sou um obá – em língua ioruba da Bahia obá significa ministro, velho, sábio: sábio da sabedoria do povo. Que outra coisa tenho sido senão um romancista de putas e vagabundos? Se alguma beleza existe no que escrevi, provêm desses despossuídos, dessas mulheres marcadas com ferro em brasa, os que estão na fímbria da morte, no último escalão do abandono. (Jorge Amado, O menino grapiúna).

Seu livro Tocaia Grande, nos leva para o nordeste dos jagunços e coronéis, religiosidade e misticismos.

Apresenta-nos cursos e questionamentos das pessoas que estão à margem da sociedade; do prazer dos sentidos até a importância circunstancial da libido; a faceta romântica do desejo – e o amor quando representado seria real e humano, nada de florear romanticamente, mas como um golpear para aquele que perdeu o fôlego.

Arquivo Nacional

Jorge Amado sempre comprometido com a existência, as faltas, erros e defeitos. A perfeição não era seu foco, mas sim, o contato carnal e ácido que muitas vezes a vida nos obriga a provar.

Este escritor fabuloso que deixou um legado histórico, ensinou a importância de criar elos com o que se vive e conhece. Os personagens das obras de ficção resultavam de sentimentos que muitas vezes fizeram parte de sua vida.

Como exemplo disso são os coronéis do cacau nos livros que tinham características de seu tio Álvaro Amado. A saga da conquista da terra e as etapas da construção de uma cultura, tudo é memória. Podemos ser sustentados por nossas experiências. Dada força seremos mestres ou discípulos. A cumplicidade que se estabelecia num ciclo perfeito, ele e suas experiências que moldavam seus personagens, suas convicções e ao amor pela Bahia constituiu o conjunto de sua obra. “Creio que em todos esses coronéis há um pouco do meu tio. Personalidade sedutora, teve-me sempre sob sua proteção, dava-me categoria de amigo, por vezes de cúmplice”, dizia Jorge Amado.

Alex Teles de Oliveira

A etimologia em latim de aluno insere o significado de discípulo, que será capaz de desenvolver de tantas outras formas um dado conhecimento ou tradição.

Geraldo Teles de Oliveira (GTO), artista brasileiro de grande expressão, esculturas internacionalmente conhecidas, foi aluno da natureza, lactente da mata, passou a infância e a juventude em Divinópolis. Em 1941, aos 28 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro onde trabalhou como moldador, funileiro e fundidor.

Seu primeiro trabalho escultórico data de 1965, quando o artista tinha 52 anos de idade, e segundo ele próprio, foi inspirado por um sonho. Ele contou que tinha amizade com as árvores e que o passo mais importante para o aprendizado é ter humildade de reconhecer nossa ligação com tudo que nos cerca. Ele tinha particular facilidade de trabalhar com a madeira.

Foto arquivo pessoal

O artista Alex Teles de Oliveira, neto de GTO, ouvia atentamente às histórias do avô sobre como sua amizade com as árvores foi fundamental. GTO começou a esculpir depois de um sonho em que as árvores lhe enviaram uma mensagem.

Alex, filho de Mauro Telles, também escultor, foi aluno atento e humilde ao desenvolver sua rica obra.    

“A  humildade é o elemento mais importante, o universo, a floresta que canta e fala comigo, ser aprendiz de meus antepassados, mas principalmente das árvores. Sou meu avô GTO, sou Teles meu pai, sou cada índio desse Brasil neste ciclo cheio de energia. Ferindo a madeira esculpo a roda humana, a madeira com seu perfume guia minhas mãos, dá forma a cada figura de meu trabalho. Assim acontece meu aprendizado, minha oração se faz ao ato de pertencer, completar e fazer parte”, conta Alex.

Foto arquivo pessoal

GTO conversava sempre com as árvores, era cumplicidade e amor – mesmo processo que Alex passou para manter o legado do avô e do pai.

Os ciclos e a roda da vida, os princípios do destino, mas girar em harmonia, um momento de adeus e inúmeros até breves, a roda da vida de GTO nunca foi tão significativa.

Alex lia as tirinhas que Carlos Drummond de Andrade escrevia e deixava para o avô em Itabira. Depois de selecionar a que seria editada no Jornal do Brasil, pedacinhos preciosos que costuraram a literatura na vida de Alex que lia tudo atentamente. Entre as preferidas estão Confissões de Minas, Alguma Poesia e A Roda do Povo.

Claro que as palavras também estão no entalho de suas obras. As palavras possuem funções diferentes: hora possuem significados, hora serão sentimentos. “Contudo minhas esculturas serão minhas palavras também eternizadas. Vejo imagens nas pedras, nas rochas das cachoeiras que cantam, o cheiro da terra, o perfume da madeira. Eu, como devoto observador, sinto a presença do divino.”

Foto arquivo pessoal

Alex defende a teoria de que a cultura brasileira deveria estar mais presente nas salas de aula, como ensinar o nome das árvores, das frutas do sertão, dos rios, de nossas tribos, mostrar às crianças as cachoeiras, falar sobre seu curso, o folclore, a beleza de nossa rica miscigenação entre povos nativos, negros e europeus. Alex desenvolve um projeto educacional há 25 anos. Já falou para mais de 60.000 crianças.  

Alex explica que ensinar é, para ele, contextualizar as palavras, vida e comunhão, “descobri meu dom e meu dom me apresenta Deus presente nas árvores que precisam ser preservadas e respeitadas. Sinto Deus no balanço dos galhos das árvores, no fruto se completa a mensagem do quanto precisamos delas. Este ano juntos aprendemos que somos todos parte da floresta. A natureza nos pede ajuda e urgência em nossas atitudes irresponsáveis de décadas.”

“Não basta o que a vida ensina, pois como mestra a vida ensina mal: é demorada, insuficiente, especula com os dados de seu interesse imediato e muito se inclina a acomodar-se. Ela por si não larga segredos. O fundamental consiste em que cada um aprenda como as coisas são. Nesse aprendizado, sucessão de atos de coragem e dureza, principalmente coragem de fechar as portas ao erro que foi verdade, encontra-se a justificativa mais ilustre da existência humana”. (Carlos Drummond de Andrade)