CADERNO DE REGISTROS
Projeto da artista Luciana Hermont vai reunir em obra registros feitos em um caderno por pessoas diversas durante período de isolamento social
Cadernos de anotações e rascunhos, para rabiscar ideias ou desenhar. Cadernos que são uma extensão de mentes criativas e mão inquietas. Cadernos guardados ou expostos, a revelar guardados no interior de cada interior.
Artistas plásticos e escritores, gente comum e viajantes costumam ter um à mão. Vão registrando ali o que pensam, o que sentem, o que inventam. Ernest Hemingway, por exemplo, usava as folhas bem cortadas e estruturadas para esboçar seus escritos e pinturas. Oscar Wilde, Pablo Picasso e Henri Matisse também o usavam. E hoje, mesmo com a tecnologia ao alcance da ponta dos dedos, uma multidão de pessoas continuam a usá-lo no cotidiano.
Apaixonada por cadernos e também pelas técnicas da encadernação, a artista plástica Luciana Hermont sempre teve cadernos como companheiros nos momentos de inspiração. Em tempos de quarentena causada pela pandemia do Coronavírus, ela encontrou nessa peça singela um jeito de ajudar, também de forma prosaica, uma amiga em quem o bichinho da angústia ganhou proporções e contornos por se ver privada socialmente.
“E se eu desse um caderno para que, de alguma forma, ela pudesse colocar esse sentimento para fora?”, foi o que pensou Luciana, ao confeccionar o primeiro de um projeto que começava aí, a tomar forma. Folhas brancas, capa neutra em papel cartão, para que o presente fosse aproveitado por inteiro, um silêncio para ser povoado ao bel prazer da presenteada.
Como pode algo tão simples se tornar tão atraente? Outra amiga ficou sabendo da ação e foi logo avisando: “Também quero um.” E assim, de um em um, já pensando em um projeto maior, que envolvesse 20 cadernos dados a 20 pessoas de diferentes gerações e fazeres, o volume de “quero também” cresceu mais do que a proposta inicial.
Hoje são 50 pessoas, cada uma com sua encadernação, entregue com 36 páginas em branco, para serem devolvidas em um prazo de um mês, um mês e meio, sem a pressão da exatidão matemática dos dias, mas também sem muitas delongas. É em cima desse coletivo de anotações e registros que a artista quer trabalhar depois. Luciana não sabe ainda o que virá: uma grande obra ou obras por associação de afinidades de conteúdos. “Antes eu estava pensando em fazer um trabalho para cada caderno, mas como tomou essa proporção, talvez a minha ideia seja juntar uns dois ou três, ver o que eles têm em comum e fazer o meu trabalho em cima disso. Estou na expectativa”, pondera.
Cada uma das 50 pessoas está pondo pra fora, registrando no papel, as nuances que sentem nesse momento de pandemia. Luciana conta que, por enquanto, não há troca sobre o que está sendo feito, nada de concreto além do retorno unânime de que está sendo ótima a companhia de um objeto que ganha vida, se anima e dá ânimo a cada um dos participantes.
“Muita gente que eu nem imaginava convidar acabou aderindo, porque as pessoas foram comentando entre si entusiasmadas. Foi muito gratificante”, diz Luciana. Seu convívio com cadernos não é de hoje, especificamente os de desenho, que a acompanham para todo lado. Um específico é o seu predileto: encadernado manualmente, ele tem pequenos nós feitos em linha grossa que, dispostos em trechos interrompidos e criando linhas de uma história intraduzível, compõem um texto muito particular. Batizado de Entre Nós, ele a acompanha há mais de sete anos.
Um pouco da artista
Fotos: Acervo pessoal
Luciana Hermont sempre quis trabalhar com arte, apesar da vida tê-la levado por outros caminhos. Há 30 anos, chegou a fazer um curso de desenho e pintura com uma artista plástica na cidade de Campinas, São Paulo, onde morava. Nessa época, ficou por três anos pintando e chegou a participar de exposições. Quando retornou para Belo Horizonte, esse ofício foi deixado de lado.
Na capital mineira, teve filhos e foi trabalhar na parte operacional da Casa Cor Minas, onde atuou por 17 anos. Também passou pela experiência de trabalhar em um escritório de arquitetura, na montagem de eventos, cuidando da parte de cenografia. Com formação em pedagogia e especialização em psicopedagogia, ela chegou a montar uma clínica para pessoas com dificuldade de aprendizagem. Um caminho diverso que, no entanto, não a fez perder a proximidade com a arte.
“Um dia resolvi que estava na hora de voltar”, conta. E foi aí, em 2011, que ela fez a prova para a obtenção de um novo título e foi estudar na Guignard. Voltou a pintar e a se dedicar à arte. Seu trabalho já foi exposto em ambientes assinados por profissionais de arquitetura e design, na Casa Cor Minas e também está algumas galerias. O projeto iniciado na quarentena, batizado de Interior, tem dado mostras que, apesar da experiência coletiva do isolamento social, o pulso ainda pulsa. Que venham novas inspirações.