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Escolhemos a carta porque ela é viajante, o texto que nasce para a partida, o exílio. Se permanecemos em quarentena, que ao menos nossas palavras possam sair de casa, sem máscaras — ou com as máscaras que desejarmos (trecho da apresentação do projeto Geografia Epistolar, de Pedro Rena e Urik Paiva)
17 de julho de 2020. A agência Reuters publica uma matéria sobre uma carta escrita pelos pintores Vincent van Gogh e Paul Gauguin que, no dia anterior (16), foi vendida em Paris para a Fundação Vincent Van Gogh, por 210,6 mil euros, ou seja, cerca de R$ 1,2 milhão.
Endereçada ao pintor Emile Bernard no final de 1888, ela é considerada a única carta que os dois escreveram juntos e narra os primeiros dias da convivência de ambos na chamada Casa Amarela, em Arles, no Sul da França.
“Agora, algo que vai lhe interessar – fizemos algumas excursões nos bordéis, e é provável que eventualmente iremos lá para trabalhar”, escreveram.
“No momento, Gauguin tem uma tela em andamento do mesmo café noturno que eu também pintei, mas com figuras vistas nos bordéis. Promete tornar-se algo bonito.”
Segundo os compradores, a correspondência constrói “um panorama visionário da colaboração artística entre os dois e do que seria o futuro da arte moderna. Uma carta, um documento histórico precioso. Uma carta e suas nuances, que não poderiam ser extraídas de nenhum outro texto, senão aqueles endereçados a alguém.
Quase um século e meio depois…
Se o meio carta foi criado para construir um contato entre pessoas que se viam espacialmente distantes e que, em épocas passadas, sem recursos tecnológicos, assim tentavam se comunicar, trazida para os dias atuais, tão tecnológicos e imprevisíveis, a carta continua a manter uma força que só esse tipo de texto tem. A tecnologia não supriu o vazio que a carta preenche.
Um pulo para julho de 2020, em tempos de quarentena causada pelo coronavírus, a certa altura da carta enviada pelo artista Marcelo Castro para a também artista Eleonora Fabião, o texto diz:
“desde o começo dessa tragédia que nos paralisou a todos tenho pensado em te escrever. (sempre evoco você nos momentos de intensa alegria ou de dor) Preciso ouvir suas palavras.”
Escrever a alguém é uma necessidade ancestral do ser humano. A literatura aponta para livros e mais livros de trocas de cartas. Cartas que revelam intenções, posicionamentos e um pano de fundo histórico sobre eventos e momentos importantes. Quantas teorias, quantas guerras e quantos fatos extraordinários as cartas já não trouxeram?
A carta acima, trocada entre Marcelo e Eleonora faz parte do projeto Geografia Epistolar, de Pedro Rena e Urik Paiva, aprovado na camada de seleção PRAE-DAC 005/2020 – Bolsa de Fomento à criação UFMG, voltada para estudantes de graduação e pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais. Ela representa bem esse sentimento que abraça a todos, em algum momento: “tenho pensado em te escrever.”
Fotos: iStock
“A carta é um campo aberto que pode habitar o poético, o humorístico, a meditação, a pergunta, a narrativa, a confissão: um gênero que pode conter gêneros. Escolhemos a carta porque ela é viajante, o texto que nasce para a partida, o exílio. Se permanecemos em quarentena, que ao menos nossas palavras possam sair de casa, sem máscaras — ou com as máscaras que desejarmos”, comentam Pedro Rena e Urik Paiva, na apresentação do projeto. Geografia Epistolar é parte de um outro projeto da dupla, chamado Surreal Politik, uma revista de arte e literatura que por enquanto está no digital, com planos de ser impressa. É o site surrealpolitik.cartografia.org que abriga as cartas trocadas entre diversas pessoas, de diversos lugares do Brasil e do mundo.
Segundo Pedro Rena, essas cartas também serão impressas e publicadas na revista, que tem lançamento previsto para o ano que vem. “A ideia é criar um espaço de diálogo sobre práticas artísticas e reflexões políticas para esse nosso tempo de crise. A troca de cartas como um meio de conviver e se encontrar por meio das palavras”, comenta Rena.
Há pouco menos de um mês, o cantor paraense Arthur Nogueira enviou uma carta por correio para a poeta portuguesa Adília Lopes, falando de uma música que ele fez, a partir de um poema dela, chamado A propósito de estrelas. São textos variados que vão compondo um mosaico cujo fio condutor é a necessidade de alguém falar com alguém. “O site já conta com mais de 20 cartas, que foram escritas para o projeto, a convite nosso, ou enviadas por pessoas que viram nosso contato no Instagram”, comemora.
“Desde que a gente lançou o projeto, temos sentido uma receptividade muito boa, muito ampla. Como as cartas são enviadas por pessoas de diferentes ocupações e de diferentes lugares, acaba que a gente movimenta muitas redes distintas. Já participaram pessoas das Letras, do Teatro, do Cinema e da Música, já tivemos cartas de Belém, de São Paulo, de Lisboa, já tivemos carta em forma de canção, de poesia, cartas descrevendo sonhos, analisando obras. Cada carta é uma pessoa única, uma forma diferente de conectar pessoas, ideias, obras e lugares”, finaliza Urik.