UM OLHAR DA CIDADE
O corpo e o espaço me ocupam. “Explorar e elucidar espaços; missão do Arquiteto.”*
Que possa ficar claro ao leitor:
PERAMBULANTE: (pedinte; esmoleiro; mendigo; morador de rua; crackeiro;)
DEAMBULAR: (andar a toa;vaguear; passear; marchar; caminhar;)
ESMOLA: (dádiva; caridade; óbolo, auxílio, ajuda, socorro, concessão, graça,favor, donativo, benefício, oferta, eleemosune)
“Deêm, ricos!A esmola é irmã da prece.”
Victor Hugo
“Os pobres gostam da esmola dos jovens porque não os humilha e porque os jovens, que precisam de todos, assemelham-se a eles… A esmola de um homem é um ato de caridade; mas a de um menino é, ao mesmo tempo, uma caridade e um carinho.
”Edmondo Amicis
1. Só existo na rua, quando o outro me vê e eu vejo o outro, o desconhecido. Para isso realizo-me usando meus sentidos, são eles concatenados,que me fazem ter sensações e me induzem as experimentações, quaisquer que sejam, de aproximação, desvio ou repelência. O espaço é uma condição da existência, manifesta e aceita pela via das sensações. O espaço comunica ou silencia. Fiat Lux! Quase esqueço; é preciso luz.
Quando saímos à rua, para caminhar, estaremos sempre a um passo da serenidade ou dasedução, explico: caminhar faz bem, fato notório, mais ainda se,formos surpreendidos.Nos movimentamos dentro de arquiteturas, ou ainda, dentro das espacialidades queestas provocam, permitem, oferecem.Meus passos pisam na Rua do Macena, meusolhos passeiam na Rua da Aurora, na Rua do Sol, Na Rua da Boavista,Na Rua daAlegria.Meus ouvidos transitam pregões, anúncios, chamamentos, assobios, cânticos,sinos, batuques, pandeiros e língua de emboladores.
Na Rua do Comércio, no Beco do Maraba, No Beco do Moeda, no Rosário. As narinas se fartam e recordam, na Rua do Alecrim, na Rua dos Cravos, nas feiras e nos mercados. Minha língua estala: Rua do Açougue, Rua da Estação,Caldo de cana caiana, suco de caju, cajá, maracujá, água de coco. Rua Nova. Pegando sol na Rua da Praia. Andar é tato, tateio o chão que meus antepassados pisaram. Meus descendentes por aí passarão, sentindo cheiros, cantarolando sons, observando o que restar dos traços estilísticos de nossa cultura registrado em pedra, tijolo, cimento, madeira, ferro, vidro. Ideias internalizadas. Assomadas do passado, impulsionadoras do futuro. Desaparecidas, refeitas, reformadas, resumidas.
Vou caminhar e minha mãe diz:cuidado! A placa diz:Atenção! O semáforo é capaz de me fazer estancar,esperar e seguir .Meus passos me levam adiante de brisas e calor, atravesso, perpasso lembrando histórias do holandês, do afro, do português, doíndio, do inglês, do oriental, de outros traços. Assombrações, evocações e lendas. Em cada prédio imperiosos riscos e ritos de cada cultura, interior de novas recordações. Miscigenados.
Estou por aqui. Sou. Eu sou. Aqui estou. Sou trabalhador e circulo; sou cocada, coco catolé, siri de coral, castanha, amendoim. Lapada de cachaça de cabeça, sarapatel, caldinho, mocotó, cozido e goles de cervejas estupidamente geladas. Caldo de cana, refresco de cajá. Cavaco. Doce de figo, de jaca,de cajus, de banana, de goiaba e queijo do sertão. Milho verde, milho assado e cozinhado, munguzá, canjica e pamonhas e bolos. Café e a saideira. Nas terras da gente. Gente é o chão nosso. Nossa gente caminha silenciosa com a gente. Caminhar é prá frente. Pés de valsa, corredores, Podo táctil.É salto, corrida, topado e escorrego.
Atravessei muitos caminhos, com eles varei recordações. Vislumbres, misturas de tempos. Estou por aqui, por aqui passo. Passarás também, passei. Atmosferas. Arquitetura marca o tempo, quando descaracterizada marca nada. Enjoa e descativa. Atravesso e sou atravessado, cantarolando sons do dia de Prazeres, “em cada prédio, traços de uma cultura, interior das nossas recordações” é suor, é sangue, das brenhas e do interior, dos cafundós do mundo, tudo isso, eu sou. Sou eu. Os passos fazem ecoar em mim o que sou. Caminhar trás certezas.Constatações. Faz existir, pensar.
Vaguear…! Ensina justiça ao mundo furta cor, em certa altura da jornada, salta-se na compaixão. Nada me falta, vejo semelhantes com caridade nas coisas que me rodeiam, soam emoções e há beleza nisso tudo, ser tocado é bonito! Você fez sua esmola hoje? O caminho trás retorno, certamente é o que se diz, querendo estar sempre em movimento. As coisas pesam-me. E, obviamente trazem minha libertação. Vem a mimos exemplos nostálgicos e a lentidão compassada de pensamentos novos com o brilho reluzente das sabedorias antigas. Estanco! Parado, acho que cheguei.
2. Hoje vou sair. Vou caminhar. Apesar da pandemia, preciso do ar livre, vouevitar as pessoas, ficar a distância, mas preciso mealimentar dos cenários dacidade, vou. Como no dizer de Walter Benjamin; Vou flanar.
Farias, Roberto Costa em “Abrigo do Ofício” 1ª edição do autor, Maceió–2017
Como já assinalado; “Maceió sempre foi e será para mim paisagem: O contemplar de seus mirantes, o por do sol na lagoa, o verde esmeralda e azul safira das praias”(Abrigodo Ofício, página 88); “Olfato, tato, paladar,visão e audição é ir e voltar para a escola à pé.” (Abrigo do Ofício,página89), Apesar da máscara vou sentir, vou caminhar pelo verde Prado e pelo úmido Vergel, vou chegar até o Centro, partindo do cemitério da Piedade, um nome tão sonoro e tão bonito quanto Livramento. Coisa boa de se sentir é a solidariedade. Cheguei na Praça da Faculdade de Medicina, antigo quartel do exército hoje Praça do Museu de História Natural (vinculado a Universidade), adotou-se a praça “ilha’’, quadrilátero cercado por quatro ruas. Arborizada e recém repaginada; foi palco para amores e brincadeiras de crianças, festejos,natais inesquecíveis, Fandangos, Pastoris e Guerreiros, parques montados à itinerância, feiras camponesas, passagem e espera, ponto de encontro. Em seu entorno, o que era residência foi virando comércio.
Atravesso o trilho da CBTU,antiga RFFSA, mais antiga ainda Great Britain Raillway ou Great Western. Hoje o trem que parte da estação para o mercado é dito VLT. Procuro o alfarrábio que existiu a direita, sabendo que deixou de existir. Atravesso a Rua Dias Cabral, facejo a Santa Casa, desemboco na área da antiga cadeia, demolida sem o necessário aproveitamento como casa de cultura e artesanato. Vejo as ameias do quartel da polícia militar, avisto o soberano edifício Breda, sei chegar na Praça do Montepio.
No Montepio dos Artistas, aperta-me a saudade de Gesivan, o jornaleiro dono da Banca de revista vizinho ao antigo Hotel Lopes, que no tempo do Sôpa, fez as vezes de rodoviária também. Gesivan faz falta. A banca está aberta, sei que não vou encontra-lo. Fujo para ouvir o discurso mudo de Braúlio Cavalcanti, tribuno eternizado no gesto e no bronze, procuro alguma forma de consolo em sua forma jovem, estática e eloquente. O que antes percebi como sussurro, torna-se fala. Mulheres riem a solta e falam palavrões, antes escapados imprecativamente, debocas masculinas. São os tempos que não param de correr, enquanto ando, lembro da Madrinha, elegantemente trajada com seu aceno de chamamento.
Do Montepio passo ao Livramento, após comprar castanhas, amendoins e filé desiri, entro na Igreja, rezo minhas Aves Marias, compassivamente, olhando para a Nossa Senhora de Bernnad, eximiamente pintada num céu tingido de alaranjado róseo como o nosso na hora que antecede o instante crepuscular. Deixo meu óbolo.
Antes de sair sou instado por mãos erguidas a repetir a doação desta feita para uma senhora menina com uma criança tão miúda em seu colo. Ainda consigo ouvir: “Vai em paz, fi di Deus”. Agora minha atenção é dirigida para Edmilson, artista de rua há mais de 40 anos, pontual, mestre do ganzá e do pandeiro, voz de blues man. Vi uma foto de Edmilson, sentado ali onde se encontra, debaixo da chuva. Não arredou o pé. Não parou de cantar, nem de tocar, Edmilson enxerga por cada poro. Sua bengala termina em uma roda, invenção dele, que não tartamudeia, gira. E sua arte é pulsante, coronária mesmo. Ele substitui a herma de Dona Rosa da Fonseca que ali, existiu. No cenário da antiga praça que tornada foi o outrora Bar do Chopp. Sigo deixando a Rua Formosa, que está longe, atrás de mim. Onde ficava o Café Ponto Central? Ou mais recentemente, A Radiante? Vou seguindo, pessoas passam, tudo tão impessoal, alguns com máscaras no pescoço. Outros com máscaras na face, outros não consegui divisar, estava olhando as construções, prédios outrora bonitos, com estilos a se suceder, cuja unidade e conjunto conferiam graça e ambiência, hoje são lacunas, substituições avantajadas, caixas de comércio. Revestidas pretensiosamente e invariavelmente mais enfeiadas porque enfeitadas.
Passo no sobrado do Camocho, Félix Moraes, vislumbro a praça do Imperador com a herma de Pedro II, Catedral, Assembléia Legislativa, Biblioteca Central, Prédio SPU….. Não me demoro, dobro a esquina na rua dos bancos, não há onde sentar… O galo da igreja do Rosário, vive estático, vive aflito….Beto Leão, presente!
Destamboco nos Martírios e vejo a outrora galeria Lourenço Peixoto, as torres sineiras espiraladas e embrechadas bem ao gosto de Gaudí, o museu das peças religiosas de Chalita, parcialmente destelhado?
A nossa Casa Branca de Luccariny, o neogótico da Intendência (nome que sedava as prefeituras), as demais construções que cercam Floriano de Ferroencimado em pedestal granítico, passo em direção ao mercado pela rua do Apolo e logo a esquerda me agrada a vista do antigo Colégio Diocesano, assobradado eladeado por árvores, mais passos e estou na Rua Augusta das Árvores, velhos e sombrosos oitizeiros a refrescar transeuntes e desde alguns anos, feirantes também. Penso que o sombreamento alcançado nesta artéria, corredor de ônibus, inclusive, deve ser o exemplo replicado em profusão nas ruas das cidades tropicais. Moro numa cidade tropical. Moro e ando! Na frente do número 199 antiga Casa de Saúde Paulo Netto, me deparo: onde vi a luz pela primeira vez, num sábado às 12h:40m. Rua do Macena. Avanço pelo antigo passeio da extinta loja “O chinelão” e avisto a Igreja do Rosário dos Pretos novamente, agora chego a Praça Deodoro. Do teatro e do tribunal de Luccariny, da academia de Letras, onde a infância foi acolhida e educada em tempos outros.
Ali, vejo quatro continentes, Europa, Africa, Américas do Norte e do Sul, nas estátuas do Valle D ́Osne, francesas, do século passado tristemente postas ao rés do chão ao alcance de jatos de urina, escarros e tintas. Lastimo, cadê os pedestais? vejo a linha do horizonte mostrando os taboleiros no sentido da Rua Formosa, ali espremido entre o morno Atlântico e a salobra Mundaú, dou-me conta: sou peninsular, sou sururu, sou caranguejo, sou risophora, sou arrecife de coral, sou cioba, sou camurim, sou cambiro, sou jacutinga. Sou martim pescador e sou mutum das Alagoas. Sou Levante e sou Poente no ciclo nictimeral dos tempos. Avanço e retorno como as marés, como os jangadeiros, como os canoeiros, como os balseiros, como os surfistas.
Numa desmedida antropofagia Caéte. Vendo as estátuas de meninos e animais, idealizo catetos e lontras, jacarés e cobras dágua, caititus e pacas, antas, capivaras nos alagoados. Água! Agora chove e resolvi como Edmilson e Gene Kelly já fizeram, cantar na chuva. Estou a ensopar, é trovoada de janeiro? Ou são águas de março? Bem sei, ou melhor, nada sei. Ou seja, “ samba, suor e cerveja! Não se perca de mim, não desapareça, pois quando a chuva começa, acabo por perder a cabeça, não saia do meu lado”, segura-me estou molhado, acho que a chuva ajuda a gente a pensar. Obrigado, Caetano. Estou ensopado, ensopado e feliz. Quero lembrar que conheço os lugares que conheci, eles tem mudado, não voltarão a ser o que foram, não para mim. mas, talvez o mais importante será resignificá-los, Sabendo como eram e entendendoa busca de saber porque eles se transmutaram. Lembro de perguntar: Você já fez sua esmola, hoje? Faça.
3. Acordo agora. Com vontade de caminhar. Penso o que tenho que fazer. Devo ir ao Centro. Faço abluções, desejum, no banho penso em ver o mar, a água é benfazeja; atenho-me e troco de roupas. Não escolho roteiro, vou ao sabor de caminhos conhecidos e há muito não percorridos. Para situar estou no Planalto da Jacutinga (Pharol), vou ao Centro e desço pelo Bom Parto, estou convulsionado em pensamentos; pandemia; mineração, subsidência. Que tempos são esses?
Talvez deva me concentrar no cenário que se descortina, Na majestosa e plácida Mundaú ou no cenário que se sobrepõe? Aquele que tenho de memória! Será que consigo? Pisar no século XXI com o imagético cenário do século XX? Talvez seja devaneio ou exercício doloroso? Vou ficar a sentir falta do que não existe mais… essa sobreposição de imagens pode causar tristeza só a mim. Vi igreja, não vejo mais a Alexandria, fábrica de tecidos,vejo a forma das casas de ex operários cuja leitura de unidade já foi há muito desfeita. Fábrica da Brandini, não é mais. Onde houve terrenos grandes, não há. A luta por espaços é intensa e é desigual. É a condição da existência: espaços. Cheguei no canal que vem desde o Bolão. Fétido e imundo com suas águas afogadas por águas servidas, dejetos e descartes de toda ordem. Por que não se fazem filtros, tratamentos e devolvem uma água ao menos ínsipida e incolor? Ao invés disso podridão e fedor, orgânicas decomposições. Ninguém ao redor parece se importar, com suas máscaras e distanciamento. Enquanto mergulho nesses pensamentos, vejo saindo dos bueiros pessoas e colchões, inacreditável. Dormiram ali! Santo Deus, quanto descalabro! Imoral! São jovens, mulheres e homens, em número de oito, nove agora. Reagrupamos colchões em trapos, se deitam e se enroscam para voltar a dormir, até que o sol esquente, penso.
Os carros me dão passagem, mediante a negociação do sinal vermelho. Não passo sozinho, outros vem em minha direção, o canteiro do canal tem árvores, travessia da Leste-Oeste. Estou na Cambona, há casarios, desfigurados em suas feições originais na grande maioria. As surpresas da urbanização: Rua Gazeta de Alagoas e a diminuta Praça Hélio Lemos, possíveis graças a um corte na encosta. Prédios se apresentam, à esquerda o desbrisado (aquele que perdeu, em reforma desrespeitosa, seus brises) volume da secretaria da fazenda e à direita o banco da Caixa, como porteiros me dão a lembrança que fiz o percurso inverso aos carros, e com isto, tantas visadas diferentes, a cena se abre e descortina-se o largo dos Martírios, com prédios de importância política em muitas décadas, subutilizados, sem uso, desocupados. A composição dos azuleijos azuis e brancos (tão em gosto nas colônias católicas portuguêsas e em cidades do Tejo), de torres sineiras que lembram casquinhas de sorvete espiralados e revestidas com retraços de cerâmicas e azulejos partidos deixariam Antoni Gaudí, o catalão da Sagrada Família e tantas obras na distante Barcelona, a esfregar as calejadas mãos e estampar um leve sorriso de satisfação, agnus dei, te deum, ora pro nobis.
Agora a vista faz seu reconhecimento, bandeiras dos munícipios, a fonte permanentemente seca e emudecida, sem a iluminação cênica noturna. Mulheres e homens em total abandono espreguiçam-se ao sol, é cedo, mas o dia não começou ainda para os que não tem seu café da manhã. O espreguiçar é raquítico neles, o linguajar chulo e rápido entre eles parece ser um dialeto,gestos obscenos permeiam sua falas, os sons deles, uns contra os outros, estão a pilheriar, debochar, mangar, sorrir. As gargalhadas que vem contrapondo ao choro, pedras do pavimento esburacado são catadas rapidamente e arremessadas nas direções em que se dispersam, ouço: cuidado com o véio e imediatamente sou cercado, mãos estendidas me dão a sensação certeira que enquanto os observava, era eu o observado, a presa que caiu no campo dos caçadores e em gestos rápidos lhes sirvo de pertences que ali posso deixar: uma garrafa de água mineral; dois sanduíches de queijo e tomate, as costumeiras moedas; um pacotede cream cracker. Espigo e curvo o corpo num maneio de toráx, no drible lembro-os que também sou livre e sigo. Você já fez sua esmola hoje? Ao desvencilhar-me me perco em dúvidas, qual caminho devo seguir? Sigo mas, permaneço pensando nestes meninos e meninas em corpos adultos, sem sonhos e vestidos em sagacidade, malícia e espertezas, que só o escudo da sobrevivência pode fornecer. “Cada cabeça, uma sentença, outra sentença, outra cabeça”. É pau.
Entrei pela esquina do moderno Banco do Nordeste, passo em frente a Fape de cunho modernista acanhado, cuja resolução no lote torna-se agradável por seu pequeno pátio interno de pergolados e colunas cilíndricas. Ela encontra-se com sublocações que desfiguram, segmentando a leitura espacial. Uma pena, mas deve-se sobreviver! De novo o escudo da sobrevida. Sagacidade, malícia eesperteza? Ou carnificina? Sei que nada sei socraticamente, agradecido a mente de Sócrates. Ninguem quer cicuta. Quer-se comida, diversão. “panis et circenses”. Não lastimo, estou a atravessar a Rua Augusta, que virou uma feira… Sigo entre óticas, eletrônicos, modas, restaurantes e prédios de portas cerradas com placas de aluga-se, apresso-me a concluir que a pandemia quebrando segue e persegue nossa vã economia. Fodeu! Nunca vi o Centro tão esvaziado de opções, embora cheio de gente. Estou comovido..
Estou agora avançando bem lento o calor aumenta e sufoca. A mascara atrapalha um bocado e protege outro bocado. Estou diante do Edifício Maceió de granilite vermelho e estilo decó, um art decó, agora desdentado. Desfigurado como muitas construções espectrais, zumbis de um recente passado de beleza, asseio e uso. Em Arquitetura, é o uso que conserva. Olho para o antigo forvm de caráter modernista, vejo o antigo liceu alagoano.
Sensação igual a que tenho quando olho para a antiga e modernista reitoria, ali na Sinibu e vejo a CATU, companhia de bondes extintos. Espera! pega na Agerson Dantas e vira na Rua Nova, você quer ver o mar. De nova, a rua não tem nada, a não ser duas casas que cederam seus volumes ao estacionamentos, quase bidimensionais, terrenos rasos com o sudário deseus tijolos e azulejos impressos apenas nos muros de limites, não há uma árvore, mas, quandoestavam derrubando eu vi os quintais vegetados, hoje o terreno vegeta. Vegeta o lucro do estacionamento rotativo de tempos automotivos onde uma máquina de 750 quilos é acionada por combustível fóssil para deixar uma pessoa de 75 quilos alguns quilômetros adiante. Progresso? Não entendi.
Na Rua Nova, vejo o esqueleto da estrutura do prédio onde funcionou e não funciona nada, aguarda seu próximo destino na história. Diante de meus olhos surge o Bella Vista Pallace Hotel, que conheço apenas de fotografias, o Arcebispado arqueja novamente, subnutrido e abandonado deteriorando-se, a Estação resiste. Vejo o horizonte na linha do mar. Mas, não posso me banhar pois faz anos, as comunidades instaladas ilegalmente e usucapianamente ao longo da espinha dorsal do Rio Maceió, jogam no corpo do aquífero toda a sorte de dejetos e descartes e o rio veicula esses trastes até a praia central mais bonita do Brasil, que não é balneável. Não é, mas, pode se tornar. Há planos e obras possíveis, nossa contribuição nesse sentido foi apresentada em várias ocasiões. Há pelo menos, dois vereadores reeleitos que conhecem o Projeto. Olho para o mar e olho para os prédios de escritórios que agora se instalam oferecendo a vista. A cara vista é cara. Está na cara a olhos vistos. Cara! O banho ficará para demolição do preceito de que é impossível despoluir. Passeando pela frente do Fênix Alagoana, estou sobre a Ponte dos Fonsecas, no largo de Cansanção de Sinimbu, aqui vejo estampada na Casa de Jorge de Lima, Principe dos Poetas, Médico e Pintor palmarindo, a doce Nêga Fulô de corpo escultural e ela vem nuinha me pedir perfumes e me pergunta se desenho jóias. Lembro de Nicanor Costa, meu avô materno que sempre me dizia: “ O trabalho é sagrado”, Fulô é linda, brejeiramente meiga, rápida e esguia. Seus cabelos volumosos estão cheios de flores e seu brilhante corpo rescendendo a água de cheiro, gira como a cantora de Hair e desvanecente, evapora-se diante de mim. Fecho os olhos inebriado e assim a retenho em imagem, suspiro, ouço um riso mangador e me viro está ali o Menino Mijãozinho a mangar de mim.
Ele ri tanto que se engasga, mas não para de mijar, seu corpo de bronze balança e lança, ele ainda ri quando o barulho ensurdecedor de aeromodelos à gasolina, preso a cabos vociferam sobre nossas cabeças… uma fumaça densa enche o ar, sufocando, olho para o menino que me aponta uma faísca, ali na dissipação dabruma espessa, chega afastando imagens e nevoeiro o Acendedor de Lampiões, esguio, nobre e altaneiro com sua vara flamejante, grita: Ráz! E outro senhor se apresenta, é Gonguilla, o príncipe que engraxa sapatos, uma pequena multidão se enrodeia nessa cena, eles estão juntos e olhando em todos os olhos expectantes acimas de multivariadas máscaras, proclamam em uníssono:“ Atentai bem!! Vão e seguem! Vão fazer suas doações!” fico feliz, olho para o alto onde Sinimbu acena afirmativamente, e cujo sorriso brando pronuncia inaudível para minha leitura labial: “ Dê esmolas”. Sim! A solidariedade é um hábito cultivado há muito. Deus te guie.
4. Da Gruta de Lourdes até a rodoviária nova de Maceió
Experimento matinador, é sábado, preciso comprar uma passagem para ouvir o colombiano Jorge Melguizo que vai falar em Sergipe, sobre a experiência colombiana de Medelinna cidade de Aracaju. Meu filho mais velho irá fazer um trabalho de equipe para a escola, deixo-o. Não há pandemia no mundo. Debaixo de uma frondosa sombra, obra de primorosa árvore de uns cinquenta anos, como eu, que tem aproximadamente, 10 x a minha altura e o dobro de meu tórax em diâmetro, calculo que quando voltar daqui a 4 horas, o carro que nos trouxe ainda estará protegido do sol. Outra motivação parece impelir-me. Conhecer a via do eixo quartel, recém entregue, que apesar de adotar o nome eixo, significado intrínseco a reta, é sepenteante e labiríntica, cheia de curvas de 90º emeandrica até onde se faculta. Ponho-me no roteiro e em compassados passos vou atravessando ruas e avenidas, verificando que os passeios calçados não se oferecem ao transeunte como deveriam, as localidades se sucedem sob o poder das pernas, que trabalham simultâneas e paralelas, da Gruta, Passo a Avenida Rotary, desta a Pitanguinha, e belisco o Farol, sobre ponteio o vale do Reginaldo e chego ao Feitosa. Não me pergunte em quantos minutos, pois o prazer do circuito foi tão grande que não marquei em minha ampulheta. O calor se dissipa em goles de água fria e na sombreada rodoviária, essa uma enorme árvore de estrutura metálica fruto da genial colaboração de três cabeças pensantes da arquitetura alagoana (um de Penedo, outro do Recife e o terceiro do Rio), amigos e mestres cujas aulas pude prazerosamente frequentar. Aqui o “Roteiro para se construir no Nordeste” de Armando de Holanda é seguido à risca, e que belo e operoso resultado se colhe! Tem passagem! compro a ida, pensando em comprar o regresso na rodoviária do destino, assim que o encontro com Melguizo findar, na sanha de voltar rápido pois é meio de semana e o escritório da arquitetura nossa de cada dia, não pode parar. Não pode se dar a esse luxo. Descanso para voltar. Penso que fazer o mesmo caminho, com o olhar voltante, enriquecerá mais a experienciação dessa vivência. Lembro-me na ponte, onde me detenho, como passei durante anos entre 1980 e 1986 por esta ponte todos os sábados, domingos e feriados para ir de casa até a rodoviária e de lá tomar o ônibus que me levava para a Praia do Francês e volta, onde em dupla com o saudoso Marcos Pêlinho, aperfeiçoei e lapidei minha forma de encarar boas ondas, a prática saudável do surf. Veio-me o arrependimento de não ter fotografado a evolução da ocupação do vale e de suas encostas, da mudança das ladeiras, do traçado das tortuosas vielas que se encimentaram em escadarias, da tipologia construtiva da construções populares, do beneficiamento da energia elétrica que chegou bem depois.
Onde havia casas e vegetações em sítios, não há mais. O espaço foi adensado de tal forma que as moradias são a topografia do lugar, sua pele eruptiva, seguindo todas as tortuosidades ditadas por encostas apinhadas de casas, inclusive com até 4 pavimentos, é. Não registrei. Foi assim, deixei escapar. Mas não escapou-me o registro da memória, esse ainda é Vivo da Silva. Possibilitando a busca do entendimento de tantos anos de ausência das políticas públicas nestes alçados. Do entendimento da não vacância de espaço, pela necessidade frente ao déficit habitacional e pela economia gerada para um mercado imobiliário informal, da compreensão da explosão demográfica neste recorte territorial, da intrusa e operosa poluição paulatina do riacho que transfere as agressões ambientais para a praia da Avenida… Na ponte eu tenho um encontro, um rapazote de bicicleta que estava a me“filmar”, gíria que significa observar, ele não tira o olho de mim, e vem de cara fechada, pedalando no curto espaço da lateral da ponte e vocifera:-“Está com muita coragem hoje!”, já prevenido, retruco:-“ Cadê vosso pai, está bem?”, quero acreditar que não olhamos para trás, passamos um pelo outro. Eu não olhei, segui em frente, duro. Me esforçando para não ficar duro… Cheguei a Fernandes Lima, mas, retornei para as ruas que compõe o tortuoso eixo. Agora a visão é do voltados, ali no edifício VC há uma louca sobreposição de lixeira, rampa e calçada com sessenta cm, resultado, tinha um sentado, desci o meio fio e fiquei pensando como aprovaram isso… O sol há essa altura é um desafio maior que a distância, relembro cenários da minha infância juventude na Pitanguinha e na Ladeira da Moenda, sítio de belos cajazeiros… Seu Jaime, nonagenário que de sombreiro e bicicleta ia e vinha todos os dias da Fernandes Lima, esquina com o antigo Posto Nobre, de casa ao mercado e vice eversa. Uma vez mamãe se interessou pela casa, pequena, mas, com um terreno grande e todo plantado, foi conversar com ele, fiquei olhando, ela voltou rindo muito, perguntei o motivo, ela mo respondeu: “-ele disse que estava guardando para vender na velhice!” Haja, presença de espírito. Passei por trás do quartel, já estou na Rotary, que está difícil de atravessar… Olho para os lados e diviso a linha tremula da onda de calor que sobe do asfalto, vejo moleques e seus inseparáveis rodos combinados com recipientes de detergentes cheios de água a lançar jatos sobre os para-brisas incautos e surpresos. Lembro do auxílio que por ventura possa apenas somar com o esforçado ganho no sol de todo um dia. Estendo a mão. É uma moça que se aproxima para receber, sorrir e beijar a nota de valor menor, volver os olhos e apontar para océu, o gesto me lembra o artilheiro que consegue furar a retranca do adversário e fazer o gol.“É gol! Que felicidade… ”Estou quase chegando na árvore cinquentenária, e em sua refrescante sombra, paro, encho os pulmões, respiro o frescor, fecho os olhos e abro várias vezes. Cheguei. Deu tempo. Agora, suado, espero o estudante voltar. Sim! há o hábito de se esperar.
¹-Texto e fotos (com exceção das autorias sinalizadas) Roberto Costa Farias