Revisitando o Conjunto Governador Kubitschek

Patricia Yegros
10 min de leitura

 CONJUNTO JK

Um monumento que resiste ao tempo

Objeto arquitetônico apropriado para uma profunda análise social, seja devido à sua inserção no contexto de uma época extremamente volátil, seja pela evolução histórica do uso de seus espaços públicos e privados, o “Edifício JK” segue como uma peça enigmática no centro de Belo Horizonte.

Entre olhares apressados, desconfiados e ofuscados, incapazes de absorver suas poderosas e múltiplas influências como invólucro de uma admirável população, ele ainda hoje nos demonstra claramente que a imagem exterior pode ocultar a verdade de um conteúdo. Conteúdo este capaz de referenciar incríveis soluções da arquitetura modernista e de elucidar o momento histórico em que foi inserido.

Visível desde vários pontos de Belo Horizonte, o Conjunto Governador Kubitschek (conhecido como Conjunto JK ou simplesmente JK) seria o marco arquitetônico do progresso da capital mineira. Embora já há alguns anos esteja passando por uma grande reforma, que atrai a atenção de quem transita por ali, a falta de conhecimento sobre sua concepção, história e arquitetura ainda é patente.

Localizado próximo à Praça Raul Soares, o conjunto reúne hoje cerca de cinco mil pessoas. Sua magnitude se traduz nas proporções dos edifícios – blocos A e B, de 23 e 36 andares, com seus mais de mil apartamentos, divididos em treze tipos que variam entre 22,7m² e 152,8m². Em sua heterogeneidade, encontramos as mais diversas culturas e classes: estudantes, aposentados, arquitetos, advogados, artistas, administradores, médicos e donas de casa somam uma parcela desse mundo.

Fotos: Patricia Yegros / Imagem: Arquivo Pessoal

Momento histórico do projeto

Juscelino Kubitschek, até então prefeito, deixa o cargo para assumir o governo de Minas Gerais em 1º de fevereiro de 1951. JK apresenta o projeto para o maior empreendimento da América Latina da época, entre casas e pequenos prédios de uma cidade que ansiava por desenvolvimento, com um otimismo desmesurado. Respondem por ele Joaquim Rolla, empresário, e Oscar Niemeyer, arquiteto, autor do grande estratagema arquitetônico.

Belo Horizonte, que na época era uma cidade arborizada com grandes avenidas, que seus habitantes percorriam de bonde ou a pé, seria presenteada com um monumento símbolo do modernismo. Motivo de orgulho que a partir daí se espalharia como um padrão por seu caráter ousado e funcional de uma típica “máquina de morar”. O CGK seria o exemplo da mais bela e arrojada obra da arquitetura brasileira. O Bloco B foi por muito tempo o edifício mais alto do estado.

Fotos: Patricia Yegros

Solucionando as necessidades sociais e ao mesmo tempo valorizando e enaltecendo o governo de JK, sua proposta era muito revolucionária para a época, com um conceito inédito de moradia colidente com o tradicionalismo da família mineira.

As duas torres, unidas por uma monumental passarela na região mais nobre e valorizada da época, disporiam de um grande Museu de Arte Moderna e de um hotel nos 4 primeiros andares do Bloco A. Além disso, cinema, boite, teatro, bar, restaurantes, piscina, lavanderias, café e tudo o mais necessário para se viver com conforto e maior praticidade. A Estação Rodoviária, “a mais bela e luxuosa do continente”, segundo o jornal O Estado de Minas da época, funcionaria no subsolo, compartilhando também espaço com lojas, agências bancárias, postal, de turismo e de viagens.

Projeto x Realidade

O que seria o Museu de Arte Moderna de Belo Horizonte foi, durante muitos anos, uma Delegacia de Crimes Contra a Natureza da Polícia Civil de Minas Gerais. Hoje abriga a 3ª AISP (Área Integrada de Segurança Pública). O cinema já abrigou uma elegante casa noturna, o Olympia; atualmente esse espaço pertence a uma igreja evangélica. Os locais destinados à boite e ao restaurante abrigam agora uma charmosa loja de móveis dos anos 50.

(Foto: Patricia Yegros)

Foto: Patricia Yegros
Foto: Patricia Yegros
Bloco A visto desde a Rua dos Guajajaras

As áreas que hoje são utilizadas para lazer possuem conformação díspar da original. O parque infantil tomou lugar do que seria o prolongamento do Museu e as quadras, que num passado recente tomaram lugar da área projetada para as piscinas, não existem mais.

Fotos: Patricia Yegros

Os elevadores dão acesso estrategicamente a andares alternados. No Bloco A, eles estão abrigados em uma unidade prismática em forma de seta, anexada ao volume maior. Esse recurso é criado para possibilitar uma disposição complexa e astuciosa de alguns tipos de apartamentos. Vale lembrar que este posicionamento favorece a segurança contra incêndios, por ser um “bloco à parte”, afastado da área residencial.

Foto: Patricia Yegros
Foto: Patricia Yegros
Bloco A com sua unidade prismática que abriga os elevadores

Uma particularidade dos apartamentos – vista como uma falha no projeto – é o tamanho (e falta de iluminação) das cozinhas. Pelo contrário, não se trata de uma falha, mas de uma consequência do próprio conceito de projeto, uma vez que o conjunto já disponibilizaria todos os serviços necessários, para que o morador evitasse fazê-los em casa.

A especificidade da função de cada ambiente se torna evidente no projeto, dissociando-se da multifuncionalidade anterior. Cada cômodo já era exposto na brochura de apresentação mobiliado, acompanhado de seu “manual de instruções”, o que demonstra claramente os usos e ocupações previstas por Niemeyer e a imposição do modo de vida planejado. A ausência da área de serviço é uma prova de como a organização e dimensionamento dos espaços são determinados pela ideologia modernista do projeto.

Todo o projeto demandava técnicas absurdamente avançadas para a sua conclusão na época, sendo assim um laboratório arquitetônico e hoje uma grande prova da persistência de alguns homens. Foi necessária a abertura de uma série de exceções no Código de Obras. A principal delas foi a que possibilitou a autorização para construção da passarela que uniria os dois blocos, atravessando a Rua dos Guajajaras. As duas tentativas fracassaram: a primeira, em concreto armado, e até mesmo a segunda, em treliça. Permaneceram por muito tempo os “arranques” de ambos os lados, até a do bloco A ser excluída para dar lugar à área de lazer, resumida a um parquinho. A do bloco B jaz até hoje intacta, esquecida entre pombos e entulho.

A trágica repercussão da construção se originou com uma inesperada crise da época (conjunto de fatores que tiveram origem no século XIX), que tornou o empreendimento inviável, deixando sua construção inacabada e firmando uma consciência negativa. Por ter sido um projeto estudado por um longo período (nada menos que 20 anos), sofreu várias modificações e houve pelo menos cinco interrupções no decorrer da construção. As obras tiveram início em 1951 e foram interrompidas em 1956, sendo posteriormente retomadas em 1968. Os apartamentos começaram a ser entregues em 1971 e a inauguração do Terminal Turístico Rodoviário foi realizada apenas em 1985.

Hoje, a construção de qualquer obra mais ousada é bem aceita, mas não seria necessariamente vista com bons olhos na década de 50, figurando como uma incógnita numa sociedade conservadora, onde a rígida herança cultural inibe o progresso. Fica em aberto a questão: se o arquiteto não constrói situações, ele não revoluciona, não há mudança no modo de vida, permanecendo a sociedade inerte e centrada na ideologia de vida e moradia tradicionalistas.

Enfim, a ideia que deve ser ressaltada é que o CGK está vivo com sua intensidade cotidiana efervescente e jamais poderia ser esquecido. Se a cidade não assumi-lo, ele ainda ali estará, impondo-se à opinião pública, sempre persuadida pela maioria. Deveríamos perceber logo todo o sentido que tal fizera no passado, como um monumento, que se não foi de vitória, foi de esperança, mas jamais como uma ruína.

(Fotos: Patricia Yegros)

Fotos: Patricia Yegros