A grande guardiã do design brasileiro

Fábio Gomides
15 min de leitura

 MOBILIÁRIO

Reconhecida mundialmente por sua importância e contribuição para a promoção do design brasileiro, a nossa entrevistada, Etel Carmona, é certamente uma das figuras mais relevantes e reverenciada para a promoção e preservação da história, da cultura e da identidade do mobiliário brasileiro. E merece ser reconhecida e celebrada por sua trajetória.

Representante mor da chamada alta costura do mobiliário, essa mineira que hoje é cidadã do mundo, foi pioneira na reedição de peças assinadas por grandes designers, além de ser um das principais responsáveis pela produção e promoção de criações desenvolvidas durante o período modernista no Brasil, considerado um dos mais importantes da história em função de diversos fatores como desenhos inovadores, uso de matérias-primas e também pela valorização da identidade e dos nossos valores culturais. Apesar das influências diretas da vanguarda internacional, o que foi criado aqui neste período não se assemelha a nenhum outro movimento mundial.

Acervo ETEL
Etel Carmona, uma das figuras mais relevantes e reverenciada para a promoção e preservação da história, da cultura e da identidade do mobiliário brasileiro

A história de Etel Carmona no mobiliário começa no início da década de 80 quando decidiu se aventurar no restauro de algumas peças do seu sítio, no interior de São Paulo. Em 1985 ela já inaugurava a ETEL nos moldes que a conhecemos hoje. É reconhecida como a empresa brasileira responsável pela maior fração de reedições certificadas dos mobiliários dos grandes mestres modernistas. Começou em 1994 com a participação de uma feira em Nova York o processo de internacionalização da marca. Hoje possui lojas-galerias próprias em São Paulo, Milão e Houston, além de revendas especializadas no Brasil (Belo Horizonte, Brasília, Goiânia, Rio Janeiro) e em diversas cidades do exterior (Beirute, Londres, Los Angeles, Miami, Moscou, Nova York, Riga, Toronto e Vancouver).

Fotos Romulo Fialdini

Galeria ETEL em São Paulo

Fotos: Filippo Bamberghi

Galeria Etel em Milão

Com suas reedições inéditas, ETEL proporcionou a difusão de muitas das obras modernistas de alguns dos principais expoentes da arte, arquitetura e design do século XX, como Lasar Segall, Paulo Werneck, Lina Bo Bardi, Gregori Warchavchik, Oswaldo Bratke, Giuseppe Scapinelli, Jorge Zalszupin, do Coletivo Branco&Preto, Oscar Niemeyer e do icônico Sergio Rodrigues. Chegou a conviver e se tornar amiga de vários dos nomes representados por ela e dos que já partiram, mantém relações amistosas com as famílias. Mas a trajetória da ETEL não ficou estacionada no modernismo. Além das peças assinadas pela própria fundadora Etel Carmona, os endereços da marca ainda estão recheados de criações exclusivas assinadas por designers contemporâneos, também consagrados, como Arthur Casas, Carlos Motta, Claudia Moreira Salles, Isay Weinfeld, Lia Siqueira, Dado Castello Branco, incluindo a espanhola Patrícia Urquiola que entrou recentemente para o pool ETEL. Entre os nomes da nova geração, destacam-se a dupla mineira da Alva-Susana Bastos e Marcelo Alvarenga e os arquitetos Domingos Pascali e Sarkis Semerdjian.

Para entender um pouco mais sobre as motivações desta empresária inquieta, que hoje conta com o suporte da filha, Lissa Carmona na condução dos negócios, batemos um papo com Etel Carmona, que você acompanha a seguir.

Você começou sua carreira profissional restaurando peças de época do seu sítio, mas você sempre se interessou por mobiliário? 

Antes do mobiliário veio a arte. Foi o universo múltiplo e seduzente das artes que me conduziu para a arte da marcenaria. Eu sempre gostei de inventar, mas não se falava em design na década de 1980. O Brasil era fechado para isso. O Fulvio Nanni (1952-1995) foi a primeira pessoa a me colocar em contato com este universo.

Qual a primeira lembrança que você tem de uma peça de mobiliário que tenha chamado a sua atenção? 

Minha primeira lembrança marcante foi com o Fulvio Nanni. Ele era muito conceituado e a gente fazia fila nos eventos para falar com ele. Eu vi uma peça dele chamada Tuca, que tinha uma esteira, mas tinha uma lona na parte de dentro da estrutura. Eu consegui uma foto da peça e levei para o Moacir (o mestre por trás da sofisticada engenharia da ETEL) e pedi pra ele fazer uma amostra da esteira apenas com as técnicas de marcenaria que ele conhecia na época. Aí marquei uma hora com o Fulvio, e quando cheguei lá eu falei: “Eu sou isso.” Ele ficou maluco! Foi ali que a minha vida mudou, ele ficou encantado e passei a fazer praticamente tudo dele. As primeiras peças que me chamaram a atenção de verdade foram do Sérgio Rodrigues, que eu conheci trabalhando com o Fulvio, mas fora os brasileiros conhecidos na época, o Hans Wegner, foi pra mim, e ainda continua sendo uma referência muito importante.

Antes do mobiliário veio a arte. Foi o universo múltiplo e seduzente das artes que me conduziu para a arte da marcenaria

E qual foi a primeira peça que você desenhou? 

Eu desenhei uma mesa, na época não tinha nem nome, fiz para uma amiga minha. Era uma mesa de jantar. Ela ficou tão feliz que começou a me indicar para muita gente. Mas a primeira peça que criei que me marcou de verdade foi o Aparador Cacos, que engloba tudo o que eu acredito. Pra mim design tem que ter beleza, cumprir a funcionalidade, ter qualidade e respeitar a natureza. Eu acho que o Cacos é tudo isso, ele é arte.

Fotos: Divulgação Etel

Criado em 2008, o aparador Cacos é considerado uma das peças mais significativas do portfólio de Etel Carmona. Possui em sua superfície uma espécie de quebra-cabeças, formado a partir de pequenos pedaços de madeiras reaproveitadas. A variação natural dos tons é o grande destaque da peça, que pode ser fixada diretamente na parede ou apoiada sobre cavaletes

E qual foi a primeira peça que lançou pela ETEL? 

A primeira mesa que desenhei pra ETEL que lançamos na loja, e que fez o maior sucesso, foi a Mesa Arco. Eu comecei a reintroduzir a marchetaria, ninguém fazia mais.

O que você considera como o maior desafio de sua carreira até hoje? 

A formação das pessoas. Porque isso sempre foi e sempre será o maior desafio. Mudar a vida dessas pessoas, formar do zero, não só como bons marceneiros, mas como cidadãos.  Desenhar mesa, cadeira, isso é fácil.

Fotos: Acervo ETEL

Você possui um recorte curatorial muito específico e muito bem definido. Como faz para manter esse conceito tão bem estruturado? 

Eu acredito que quando a gente tem os valores bem definidos, fica mais fácil você identificar o design que se encaixa nessa identidade. Nossos valores são baseados no amor à arte, amor ao homem, e amor à natureza. O designer e o desenho precisam estar alinhados com esses propósitos.

Se pudesse escolher um único designer (já falecido) para desenhar uma peça exclusiva para ETEL hoje, qual seria?

Hans Wegner ou nosso querido e recém-falecido Jorge Zalszupin.

Mudar a vida dessas pessoas, formar do zero, não só como bons marceneiros, mas como cidadãos.  Desenhar mesa, cadeira, isso é fácil

Potyra Tamoyos
Etel Carmona em sua fábrica

Na sua opinião, existe algum movimento mundial que se assemelhe ou que seja tão relevante culturalmente quanto o Modernismo? 

Acho que não. O que aconteceu com o movimento Modernista aqui no Brasil foi muito especial. Foi um movimento coletivo e não individual, eram intelectuais, artistas, arquitetos e designers, criando e pensando juntos. Eu acho que essa conjunção é que fez do movimento algo tão potente.

O esmero no acabamento das peças produzidas e assinadas pela ETEL é uma das marcas registradas da empresa. Você considera que isso foi o fator preponderante para o seu sucesso, principalmente no exterior?

Com certeza foi um divisor de águas, mas também a seleção de designers foi e continua sendo muito importante. Eu costumo dizer que a alta costura de verdade você pode virar do avesso. Quando o Moacir começou a trabalhar comigo ele perguntava: “Dona, porque tem que lustrar a parte de dentro se ninguém vai ver?” eu respondia “Eu vou ver!”. Tudo era importante pra mim, a beleza, o bem feito…A qualidade você sente com o dorso da mão.

Fotos: Ruy Teixeira

Fábrica Etel

Como é o processo de seleção das madeiras utilizadas? 

O processo segue a lógica inversa. Para trabalhar com madeira certificada você tem que entender o que a floresta e o meio disponibilizam, e nós vamos nos adaptando, testando. Cada madeira é única, têm suas qualidades e aplicações, dureza, maleabilidade, veios… Nós fomos os primeiros a usar roxinho por exemplo; era uma madeira que só era usada em tapume, nós fomos os primeiros a usar essa madeira em peças de design.

Qual(is) a(s) peças mais vendidas pela ETEL? 

As peças mais vendidas em unidade são a minha Cadeira Astania e a Cadeira 22. A minha mesa Mineira vende bastante também.

Fotos: Acervo ETEL

O nome da cadeira veio a partir de uma homenagem à amiga Tânia Gontijo, proprietária da São Romão (revendedora ETEL em Belo Horizonte). Como não deveriam ser usadas sozinhas, Etel logo propôs que elas se chamassem Astânia, remetendo de forma carinhosa ao jeito mineiro de falar, que ignora o “s” ao final dos plurais

Peças Emblemáticas Etel Carmona

Livreiros Jatobá

Fotos: Acervo ETEL

O conceito do Manejo Florestal “mães, filhas e netas” foi a inspiração para a criação deste trio de livreiros, onde o mais alto seria a árvore mais antiga, a média seria a filha e menor, a neta. Todas próximas para garantir a preservação da floresta. Originalmente, cada livreiro foi elaborado com uma madeira nativa, exótica, como roxinho e breu para mostrar a diversidade da floresta. As peças podem ser vendidas separadamente, em diferentes madeiras.

Mesa lateral Pompéia

Fotos: Acervo ETEL

As monotipias de Pompeia trazem as vívidas memórias da civilização dessa cidade do império romano e sua catástrofe. As peças estão guardadas em expositores que podem ser usados como pequenas mesas ou mesmo fixados na parede. Outros elementos e fotos estão posicionados em discretos dispositivos para serem descobertos e manuseados.

Mesa de centro Explosão

Fotos: Acervo ETEL

Foi em seu ateliê, no interior de São Paulo, que Etel Carmona se deparou com um fungo alaranjado e radiante crescendo livremente pela superfície de um pedaço de madeira. Foi pelo encanto com pela irreverência e beleza singular do organismo que surgiu a mesa central Explosão. Os raios da explosão, representados por feixes de madeira clara em marchetaria, com claras influências barrocas, irradiam do poder deste pequeno ser vivo, o que torna esta peça única entre as criações de design. Nunca uma explosão é igual a outra.