Um barco sobre os jardins de Paris

Norma Santos
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 ARQUITETURA

Dono de um paisagismo quase infinito, o Jardin d’Acclimatation, maior cenário verde da França, colado ao Bois de Boulogne, um suntuoso bosque de Paris que abrigava o antigo “terrain de chasse”, e hoje é reverenciado por franceses ou não fascinados pela exuberância de suas espécies. Cercado por sofisticados endereços parisienses, o lugar privilegiado por ser também um parque, teria para si todos os olhares não fosse a imensidão de “um barco” com formas transpostas, efeito de luz, espelhos e fluidez, lembrando velas infladas pelo vento, que surgiu como se velejasse a vasta floresta. O que ninguém imaginava é que a nave surrealista, inspirada na madeira, ferro e vidro dos anos 1.800, ostentaria o museu de arte e o centro cultural da Fondation Louis Vuitton, um legado de luxo da empresa francesa pouco visto no nosso século.  Fechado em função da pandemia, a criação majestosa de Frank Gehry tem reabertura contada pelos apreciadores da arte e seguidores do arquiteto que guardam na lembrança todos os detalhes. 

Nas muitas interpretações, há quem descreva a imponência do prédio como “uma catedral de luz, fruto de um milagre da inteligência e do avanço tecnológico.” Uma ousadia que custou a Gehry 12 anos de rascunhos. O resultado é a leveza do vidro transparente, refletido em 12 conchas, construídas com 3.600 painéis, cada um com um desenho diferente e diversas tonalidades, especialmente curvo, todos feitas sob medida e com precisão milimétrica, sugerindo formas de velas ou de um grande iceberg. Estes blocos de cimento branco conferem um volume reforçado por fibras, apoiadas por um feixe de madeiras, enquanto que o aspecto translúcido permite que a construção se integre ao Jardin d’Acclimatation e ao Bois de Boulogne.  Tudo pensado para evocar a tradição dos edifícios de vidro com uma arquitetura que cause impacto e fosse diferente de qualquer outra coisa que alguém já tenha visto. Mesmo para os não conhecedores das artes ficou claro que o projeto ignora limites e as tradições geométricas. 

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Centro cultural da Fondation Louis Vuitton

Projetado para abrigar e exibir as coleções particulares de Bernard Arnault, magnata e proprietário da empresa francesa, o prédio com 46 metros de altura, recebe um verdadeiro tesouro artístico nas 11 galerias de artes, onde um acervo permanente já mostrou obras de mais de 100 artistas da Europa e do mundo afora. As exposições são temporárias o que permite uma maior dinâmica entre as peças apresentadas. Seu acesso começa pelo hall de entrada, uma área social com um restaurante, uma livraria e um teatro com programação musical diária.  Além disso, um auditório modulável com capacidade para 350 lugares, funciona também como centro educativo multidisciplinar, com espaços para palestras, debates e demais performances. No local, o arquiteto também homenageou o Grand Palais, usando os mesmos materiais de vidro e aço. 

Os que quiserem conhecer um dos edifícios mais caro do mundo com calma, terão de dedicar-se a ele um dia inteiro. O terraço da Fundação Louis Vuitton descortina uma vista diferente da Paris tradicional, trazendo ao olhar do visitante, entre outros pontos, os prédios de La Défense, no prolongamento de avenida Champs Elysées, uma espécie de ‘bairro novo’ da cidade, que abriga um centro financeiro. Para os que se deslocam de galeria em galeria dentro do edifício escultural são dados os privilegiados vidros da fachada que exibem a extensão do Jardin d’Acclimatation e do Bois de Boulogne, um verdadeiro espetáculo de cenário verde.  No térreo, tudo se reflete em espelhos d’água e as formas da cascata dão a impressão de ser um veleiro atracando em meio a vegetação de uma área de 11.700 mil metros quadrados. O terreno pertence à prefeitura de Paris, que cedeu o espaço a mais de 60 anos para o grupo Louis Vuitton. Doação que para a mídia especializada é um paradoxo de abundância, gerando questionamentos antes, durante e depois de ter sido concluído. 

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Reconhecido internacionalmente pela inovação em design digital e construção, a obra de Frank Gehry estabeleceu um novo padrão para o uso de tecnologias digitais e de fabricação avançada. Mais de 400 pessoas contribuíram com modelos de projeto, normas de engenharia e restrições de montagem de um modelo 3D digital hospedado na web, que inteligentemente adaptou-se para os requisitos do projeto. Mais de 3.600 painéis de vidro e 19 mil painéis de concreto que formam a fachada foram simulados utilizando técnicas matemáticas e moldados através de robôs industriais avançados, tudo automatizado a partir do modelo 3D compartilhado. Um novo software foi desenvolvido especificamente para compartilhar e trabalhar com o desenho complexo. A arquitetura também se mistura a elementos orgânicos e futuristas como a estrutura do telhado de vidro que permite ao edifício recolher e reusar a água da chuva, melhorando sua energia geotérmica. Essas medidas equivalem ao LEED Gold, uma ousadia visionária da tecnologia moderna.

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Frank Gehry

Se de um lado considera-se o edifício-arte uma das obras de maior motivação artística e sofisticação tecnológica no portfólio do arquiteto Frank Gehry, que começou projetando pequenas casas e quitinetes com armação de madeira, no sul da Califórnia, nos Estados Unidos; por outro lado, há críticos que reclamam não entender um investimento tão alto, cerca de 140 milhões de euros, em uma obra faraônica, com quase 12 mil metros quadrados de área. Uma outra corrente defende que não precisamos de tanta extravagância, de uma “arquitetura do espetáculo”, em que forma e escultura se sobrepõem à função da utilização. Sim, talvez obras mais simples e acolhedoras façam mais sentido no mundo contemporâneo da arquitetura. No entanto, Bernard Arnault quis apenas dar mais grandiosidade à sua marca.  Aliás, é bom lembrar que houve muita polêmica à época da inauguração da Torre Eiffel, em 1889, hoje um cartão-postal que transpõe as terras europeias.

Arnault convidou um dos mais ousados arquiteto da atualidade para a execução de um projeto não menos audacioso, com uma estrutura desprovida da brutalidade da arquitetura modernista. O pedido aconteceu depois de conhecer o Museu Guggenheim de Bilbao, mais uma exuberância criada pelo arquiteto canadense na Espanha. Outros projetos importantes são o Walt Disney Concert Hall, no centro de Los Angeles, a Casa Dançante em Praga, na República Tcheca, e sua própria casa, em Santa Mônica, na Califórnia. Além de várias premiações acumuladas, Frank Gehry foi condecorado em 1989 com o Pritzker, considerado um dos prêmios mais notáveis e de maior destaque na arquitetura internacional.